março 11, 2004

OS BASTIDORES DA FÁBRICA DE "ESTRELAS"

LONDRES - Começa assim : num belo dia de primavera,o telefone toca 'as onze da manha.Do outro lado da linha,uma voz aveludada anuncia,em tom ligeiramente solene : ''Bom dia ! Voce foi indicado para....''. A palavra ''indicado''(''nominated'',em ingles) lembra,na hora,aquelas festas de entrega do Oscar: ''The nominated are....''.Por uma milesimo de segundo,voce pensa,com seus botoes : '' E' a gloria,ainda que tardia ! A Europa se curva diante do Brasil !''.O delirio se desfaz rapidamente,porque voce jamais passou diante de uma camera de cinema.A festa do Oscar ja' acabou ha' seculos.A voz aveludada esclarece que voce foi ''indicado'' para entrevistar Scott Wolf ao meio-dia e meia da quinta-feira na suite 1132 do Saint James Court Hotel,no numero 45 da Buckingham Gate - endereco nobre,a um passo do Palacio de Buckingham.Otimo.Mas uma duvida devastadora paira no ar : quem e' Scott Wolf,pelo amor de Deus ? Por cortesia,voce livra a moca de voz aveludada do constrangimento de ouvir a pergunta. Corre,entao,para o Dicionario de Cinema.Nada.Nem uma linha sobre nosso heroi. Voce se lembra daquele escritor ingles - G.H.Chesterton - que disse,no inicio do seculo :''O jornalisno consiste basicamente em dizer ''Lorde Jones morreu'' a pessoas que nunca souberam que Lorde Jones estava vivo''.Quem sabe nao tera' chegado a hora de adaptar a maxima 'as premencias deste final de milenio : fazer jornalismo e' entrevistar o famoso Scott Wolf sem jamais ter imaginado que Scott Wolf existisse.

Horas depois do telefonema,chega um novo convite : voce e' esperado para a avant-premiere de ''White Squall'',o novo filme de Ridley Scott(o ingles que dirigiu sucessos como ''Alien'',''Blade Runner,o Cacador de Andoides'' e ''Thelma e Louise'').O filme vai ser exibido para jornalistas na sala de projecao de uma produtora na Dean Street,uma transversal da Oxford Street,no centro de Londres.Um fax chega com os detalhes.O misterio comeca a se desfazer : Scott Wolf -um ator de vinte e sete anos - e' um dos astros do filme. Um dia depois da avant-premiere, o famoso Scott Wolf estara' 'a espera dos jornalistas ''indicados'' na suite do hotel nas vizinhancas do palacio da Rainha Elizabeth Segunda.

Martin Amis,o mais incensado escritor ingles da geracao que hoje transita pelos quarenta anos de idade rumo ao meio seculo de vida,viajou uma vez para Nova Iorque para entrevistar Madonna,mas a estrela nao quis recebe-lo.Amis nao desistiu.Primeiro,morreu de rir da pompa ridicula que cercou o lancamento daquele livro de Madonna em poses provocativas.Depois,produziu um longo artigo para dizer que o grande assunto hoje nao e' o artista,o cineasta ou o escritor - mas a maquina publicitaria que os cerca.Acertou na mosca.O publico nem sempre sabe,mas os bastidores,em geral,sao mais interessantes que as declaracoes da estrela da vez .O nome da estrela da vez e' Scott Wolf.
Se algum forasteiro ouvisse os cumprimentos trocados por jornalistas na sala de exibicao antes do inicio da avant-premiere certamente imaginaria que ali estavam legitimos representantes do jet set internacional : ''E ai ? Como e' que foi a Sharon Stone ?''.''Nao fui.Mas deu pra fazer Susan Sarandon - uma simpatia''.''E Robin Williams ? Vem ou nao vem a Londres ?''. Os jornalistas revivem ali a cena surrealista que encenam incontaveis vezes durante o exercicio da profissao : falam de celebridades como se fossem velhos intimos de cada uma. Nao sao,obviamente. Frequentam,na condicao de entrevistadores,suites presidenciais de hoteis de cinco estrelas em que jamais,sob hipotese alguma,poriam os pes em missao particular,por absoluta insuficiencia de fundos bancarios. A reciproca e' verdadeira : celebridades tratam os jornalistas como se fossem amigos de infancia. Astros diplomados no jogo sabem como conquistar simpatias imediatas : Paul McCartney faz questao de tratar os entrevistadores pelo primeiro nome,um sinal de intimidade que,em situacoes normais,os ingleses so' dispensam a velhos conhecidos.Ali McGraw -aquela atriz de ''Love Story'' - deu o endereco,pessoal,a um reporter brasileiro,na contracapa de um livro,depois de uma entrevista.Se o reporter,acometido de uma crise de otimismo,resolvesse pegar um aviao rumo ao endereco de Miss McGraw em busca de emocoes extra-jornalisticas seria,com toda certeza,enxotado por segurancas do porte de Adilson Maguila ainda na porta da mansao. E' tudo uma grande festa,feita de interesses mutuos.O jogo e' aberto : a distribuidora oferece ao jornalista ''indicado'' a chance de entrevistar um astro,porque quer ocupar espacos nos jornais ou tempo nas teves.O jornalista aproveita a chance porque,quem sabe,pode obter uma boa entrevista.Quem dispensaria a chance de um encontro exclusivo,sem a presenca de intrusos,com o genio Woody Allen,por quarenta cronometrados minutos,na suite de um hotel com vista para o Hide Park ? Ninguem.O problema e' que nem sempre os entrevistados sao do primeirissimo time no ranking dos campeoes de preferencia.Para cada Wood Allen que cai do ceu,ha' dez roteiristas ou produtores ou astros coadjuvantes que nem os proprios jornalistas conhecem.Mas o sentimento comum e' de que vale a pena arriscar.Quem sabe nao estara' ali um futuro Stanley Kubrick ou o Dustin Hoffmann do ano dois mil ?

O NOVO TOM CRUISE ENFRENTA
UM NAUFRAGIO EM ALTO MAR

Comeca -afinal- o novo filme de Ridley Scott.Minutos depois de iniciada a projecao,um dos jornalistas convidados dorme um sono solto.Morfeu ronda a sala. Mas as cenas de catastrofe na tela despertam os sonolentos.Ainda sem titulo em portugues,com lancamento previsto para o Brasil em junho,o filme conta a historia de dezesseis adolescentes que partem em viagem de instrucao em um barco comandado por um velho lobo do mar,vivido por Jeff Bridges.A historia e' baseada em fatos reais.Toda a experiencia do capitao nao impede que o barco va' parar em meio a uma tempestade cortada por raios e trovoes.''White Squall'' -o titulo do filme - e' o nome da tempestade.Filmadas em um grande tanque,em meio a ondas gigantescas provocadas por um motor,as cenas do naufragio sao de tirar a respiracao.Seis tripulantes - quatro alunos,um oficial e a mulher do capitao - morrem na tempestade.A tragedia vai para as manchetes.O capitao termina no banco de reus.O julgamento vira dramalhao tipico de Hollywood.E' a versao maritima de ''Sociedade dos Poetas Mortos'' ou de ''Brubaker'',aquele filme em que Robert Redford faz o papel do diretor que tenta humanizar uma penitenciaria. Agora,o heroi que enfrenta a incompreensao do sistema e' o capitao vivido por Jeff Bridges(uma curiosidade biografica : Jeff Bridges e' filho de Lloyd Bridges,o ator da serie de TV ''Viagem do Fundo do Mar''.Chegou a fazer pontas na serie.Nao e' estranho,portanto,ao mundo dos golfinhos,tubaroes e tempestades).Scott Wolf faz o papel de um dos adolescentes que vivem a aventura no mar.


O estudio poderia ter trazido Jeff Bridges - ator consagrado- ou o diretor Ridley Scott para a bateria de entrevistas na suite do hotel em Londres.Mas nao.A hora e' de apontar os refletores sobre o futuro astro Scott Wolf.Os jornalistas ''indicados'' deparam-se com um poster do filme na antesala da suite.Um garcom aparece para tirar as duvidas : em que posso servi-los ? Duas mesas repletas de croissants,sanduiches,cafe',cha' e leite estao a' disposicao dos convidados.Os mais famintos podem avancar sobre um bolo de chocolate,se quiserem.A moca de voz aveludada vai levando os jornalistas,em grupos de quatro,para o encontro com o futuro superstar.Ha' restricoes : ninguem deve levar maquina fotografica. Os jornalistas devem chegar pelo menos quinze minutos antes do horario previsto.Parece que um dos segredos usados pela maquina publicitaria para conceder um ar de importancia a qualquer acontecimento e' cerca-lo com um certo ar de solenidade.''Nada de fotos''.''Por favor,chegue na hora''.''Mister Wolf tera' trinta minutos para cada grupo''.Ha' poucas semanas,jornalistas passaram pelo ritual de ter as maos carimbadas com uma tinta especial para ter o direito de ouvir a entrevista coletiva dos renascidos Sex Pistols,em que a maior atracao foram os retumbantes arrotos do lider da banda.A engrenagem sabe como funciona.

Scott Wolf usa a tatica Paul McCartney para criar um clima de intimidade : repete o nome de cada um dos jornalistas,enquanto os recebe com um aperto de mao firme e um ''que bom ver voce''.Pela enesima vez,ele repetira' - sem demonstrar qualquer sinal de impaciencia - como foi dificil enfrentar aquelas ondas na filmagem da cena do naufragio.Dira',candidamente,que se surpreende ao ser reconhecido na rua ''tao longe de casa'' - gracas 'a exibicao na TV inglesa de seriados americanos em que atua,como ''Party of Five'' ou ''Saved by the Bell''. Fara' revelacoes biograficas curiosas : chegou a se formar em ''financas'' na universidade de George Washington,mas terminou,tardiamente,optando pela carreira de ator,gracas aos conselhos de um amigo.Nao,nao se considera ''simbolo sexual'' - quem se considera,no planeta Hollywood ? Os elogios vao,todos,para o diretor que o escolheu como estrela - Ridley Scott. Com que outro gostaria de trabalhar ? ''Meu Deus'',diz o futuro astro ao GLOBO,''sao tantos...''.Termina citando nomes : Barry Levinson,Martin Scorcese,Quentin Tarantino,Robert Redford,Francis Ford Coppola. Comete uma boa frase : ''Quero trabalhar com diretores que me ajudem a descobrir dentro de mim coisas que nem eu sei que existem''.

Enquanto fala,o novo Tom Cruise nao para de comer uvas,traca uma banana e consome copos d'agua.''E' o meu cafe' da manha...'',explica.Barba por fazer,olhos azuis,camisa de manga comprida preta,calca de veludo verde escuro,o novo ''simbolo sexual das adolescentes'' anuncia que nao quer criar limites para si proprio : depois de se recuperar da maratona de lancamento de ''White Squall'',aceitara' participar de qualquer projeto que lhe pareca um desafio.''O problema e' que a maioria dos scripts que a gente recebe e' lixo''. Numa mesa ao lado,uma agenda preve o que acontecera' nas proximas horas ate' o dia seguinte,quando, ''ás 6:55'' ,um carro estara' no aeroporto,em Los Angeles,para levar Scott Wolf para casa. E' tudo cronometrado.Trinta minutos depois de iniciada a entrevista,uma das funcionarias encarregadas de organizar a maratona abre discretamente a porta da sala e caminha sem produzir qualquer ruido para as proximidades da cadeira onde o novo Tom Cruise consome uvas e bananas entre uma e outra frase.E' o sinal de que o tempo acabou.Wolf ainda brinca.Depois de fazer pontas em filmes inexpressivos,ele confessa : ''e' a primeira vez que faco um filme capaz de reunir pessoas em torno de uma mesa''.

Os jornalistas recebem um pacote de informacoes sobre o novo filme : um texto de trinta e sete paginas com biografias de atores,diretor e produtores e a historia das filmagens,alem de slides coloridos e copias de reportagens publicadas em revistas sobre o futuro astro. Ha' material de sobre para encher paginas e paginas.A engrenagem publicitaria se move para lancar um novo nome nas fachadas de cinemas de todo o planeta. Quando o grupo de jornalistas deixa a sala,Scott Wolf repete o ritual com o grupo seguinte,formado por suecos,portugueses e espanhois : de pe' diante da porta,repete o nome de cada um,exibe um sorriso de gala.Vai comecar tudo de novo.O futuro astro ja' aprendeu a licao : nao exibe o menor sinal de enfado.E' provavel que,no intimo,esteja contando os segundos para se ver livre daqueles desconhecidos que fazem perguntas como se o conhecessem desde o berco.O futuro superastro cumpre o ritual com atuacao exemplar.Porque sabe que,em breve,aparecera' em publicacoes e em teves de todas as partes - em idiomas tao dispares quanto o arabe ou o sueco.Assim nasce uma estrela.
La' fora,uma camareira olha com curiosidade para o gravador do reporter,pergunta quem e',afinal, a figura importante que ocupa aquela suite. Voce tenta exibir um ar de intimidade : ''Scott Wolf !''.
Ok,lord Jones morreu.Mas a maxima de Chesterton talvez mereca uma nova -e ultima- correcao.De vez em quando,como agora,nesta manha clara de primavera nas vizinhancas do Palacio de Buckingham,fazer jornalismo e' dizer que Scott Wolf existe a camareiras que -exatamente como nos,pobres mortais - jamais suspeitaram que Scott Wolf um dia tivesse existido.

(1996)

Posted by geneton at março 11, 2004 01:39 AM
   
   
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